Foto de Flo Maderebner no Pexels
A consciência da travessia surgiu de uma “live gravada" de Nando Reis. Em certo momento, todo atrapalhado com o formato do evento e com a interação através de “chat” - a ponto de desistir e ter de ser socorrido por alguém na retaguarda - ele tocou nesse assunto.
A pergunta era sobre o que fazer depois de encerrada a quarentena. A resposta foi simples: voltar a fazer shows ao vivo e ter contato com o seu público, esperando que isso ainda vá existir depois da travessia de agora.
Há uma certeza. Atravessaremos e chegaremos ao nosso destino.
E cada travessia é particular. Ela pertence a cada um e cada uma, mas não precisa ser trilhada só. Talvez queiramos momentos de individualidade absoluta, como na meditação, e talvez, no final de tudo, no nosso instante final, não haja como ter companhia mesmo que queiramos.
Recorro à Arte, com A maiúsculo, para trazer duas experiências que me ocorrem.
Na primeira delas, Milton Nascimento e Fernando Brandt nos brindam com uma travessia que descreve a passagem de uma desilusão amorosa para um novo tempo, pois há muito o que viver. A seguir, um trecho dessa obra prima:
Quando você foi embora fez-se noite em meu viver Forte eu sou, mas não tem jeito Hoje eu tenho que chorar Minha casa não é minha e nem é meu este lugar Estou só e não resisto, muito tenho pra falar
Solto a voz nas estradas, já não quero parar Meu caminho é de pedra, como posso sonhar Sonho feito de brisa, vento vem terminar Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar
Vou seguindo pela vida me esquecendo de você Eu não quero mais a morte, tenho muito o que viver Vou querer amar de novo e se não der não vou sofrer Já não sonho, hoje faço com meu braço o meu viver
Na segunda delas, Elizabeth Gilbert, autora de Comer, Rezar, Amar, a travessia vem da sonoridade da palavra “attraversiamo”, do italiano. O simples ato de atravessar uma rua causa nela uma sensação muito agradável. A seguir, um trecho do livro que explora essa descoberta.
Attraversiamo.
Quer dizer: "Vamos atravessar." Os amigos dizem isso uns para os outros sem parar quando estão andando pela calçada e decidem que chegou a hora de passar para o outro lado da rua. Ou seja, é literalmente uma palavra pedestre. Ela não tem nada de mais. Mesmo assim, por algum motivo, causa-me um efeito poderoso. Na primeira vez em que Giovanni me disse isso, estávamos caminhando perto do Coliseu. De repente, eu o ouvi dizer essa palavra linda e parei, perguntando:
- O que isso quer dizer? O que você acabou de falar?
- Attraversiamo.
Ele não conseguia entender por que eu gostava tanto dessa palavra. Vamos atravessar a rua? Mas, aos meus ouvidos, essa é a perfeita combinação de sonoridades italianas. O a aberto e promissor da primeira sílaba, o r enrolado, o s tranquilizador e a interminável combinação "ii-aaaa-mo" no final. Adoro essa palavra. Agora a digo o tempo inteiro.
E nós, pobres mortais, não deixamos de viver nossa travessia. Humilde ou grandiosa, de cada um.
S.T.Azevedo