Imprevistos
- S. Terra de Azevedo

- 30 de nov.
- 2 min de leitura

A via é expressa. Duas pistas num sentido, duas outras no sentido contrário, um acostamento de cada lado, também utilizados como pistas expressas. Numa extremidade, o mangue. Na outra, a ciclovia. No meio e nas extremidades, altas grades de proteção. Ou seriam de separação?
Quem passa por ali geralmente tem pressa. Na cidade que talvez tenha a maior densidade de semáforos por metro quadrado, pouco mais de quatro quilômetros sem cruzamentos são quase um convite para ultrapassar o limite de velocidade.
Não é admirável essa proeza da engenharia, construída sobre o mangue?
Diz a lenda que, em um momento de relativa calmaria, um sujeito do lado de cá perguntou para outro, do lado de lá:
— Ei, como eu faço para chegar até aí?
— Não sei. Eu nasci aqui — foi a resposta.
Andar num lugar desses sem veículo motorizado não é tarefa para qualquer um.
Mas, outro dia, depois de deixar os filhos na escola, naquele horário que antecede o rush — um horário que contraria os estudos científicos sobre o ciclo circadiano e não respeita o sono de crianças e adolescentes —, parti para a Via Mangue rumo ao trabalho.
Vejo adiante pisca-alertas sendo acionados. O ritmo precisa ser reduzido para evitar um acidente.
E tudo se dá muito rápido.
À direita, uma motocicleta está estacionada. Uma moça está em pé e olha para a frente. Mais à frente, o motociclista está correndo entre os carros. O que ele está fazendo?
Logo percebo um cachorro perdido no meio da confusão. Amedrontado, ele não permite a aproximação do motociclista, que corre — para resgatá-lo? Se antes corria para a frente, agora está voltando.
O motociclista parece cansado e frustrado. Não sabe se continua a correr. O cachorro também está cansado, mas o medo não o permite desistir.
O fluxo de carros volta a fluir, devagar. Quem estava parado volta a andar, distanciando-se da cena dramática.
Enquanto me afasto, vejo pelo retrovisor o cachorro saindo para uma rua, escapando da via expressa. Ao menos ali não havia uma grade.
Mas se a manhã começou de forma angustiante, o dia transcorreu normalmente e nenhuma notícia sobre o episódio foi divulgada nas televisões ligadas nos bares e restaurantes no horário do almoço. Outras questões ocuparam o espaço e entretiveram quem almoçava tranquilamente.
S. Terra de Azevedo
Créditos: Foto de Ahmed, no Pexels




Estive recentemente em Recife . Posso dizer que senti o paradoxo ao cruzar uma via expressa sobre o mangue , recebendo o comentário do motorista que me levava . Pra resumir , uma maneira pungente da incongruência que define a experiência urbana moderna. A proeza de uma obra com a promessa de fluxo e eficiência, simbolizava na minha cabeça de Curitibano o "self ideal" da cidade – rápida, desenvolvida, sem semáforos.
No entanto, a realidade observada do mangue sacrificado, as grades de separação , de forma muito sensível descritas com a cena de cão em pânico, revela o "self real" da cidade, na cabeça do motorista , Recifense que me carregava a um restaurante . Senti sua dor ao s…