O trajeto é percorrido uma vez na semana. Cruzo um rio imponente e famoso. Há quem diga que ele, ao se juntar com outro, juntos enfim formam o oceano Atlântico.
Poderia prosseguir com o exagero e passar a descrever a beleza deste lugar, que se apresenta de forma exuberante. Irei, entretanto, por um caminho no qual a realidade pode mostrar-se dura.
Estamos no centro de uma cidade. Um centro desgastado, sujo e feio. Que passa por melhorias, mas que mantém seus lugares de abandono. E é num sinal de trânsito dessa área esquecida que, em dois momentos fugazes, deparo-me com alguém.
O sinal fechou. Algumas pessoas iniciam o trabalho de limpar para-brisas. Observo uma senhora com o seu rodinho e sua garrafinha de água.
Não era a primeira vez que a via.
Ela não faz o seu trabalho. Não se atreve a jogar a água sobre nenhum para-brisa. Ela caminha por entre os carros, no caminho onde as motocicletas encontram seus atalhos.
Qual seria a quantidade de nãos que uma pessoa pode suportar?
E ela olha para as pessoas. Neste dia ela passava pelo lado direito do meu carro quando olhou para mim. Eu sustentei o olhar. Baixei o vidro da porta direita até a metade e peguei uma nota de 2 reais que tinha na carteira. Fiz um gesto para que ela se aproximasse, e ela veio até mim.
Sua mão fazia um gesto de conchinha, pronta para receber uma moeda. Ao ver uma nota de dois reais, ela se admirou e agradeceu dessa forma:
— Moço, hoje cedo eu já ganhei uma sopa. Noutro dia me deram um saco de feijão.
Sorri para ela, que continuou falando, agora já aborrecida.
— Eu não entendo porque todos aqui recebem o Bolsa Família e eu não. Já fui ao CRAS*, mas nunca consegui fazer o cadastro.
Minha testa estava franzida. Só pude dizer algo do gênero: — É mesmo?
Nossa conversa foi interrompida por buzinadas. Era preciso dar continuidade à vida. Ela se afastou e eu prossegui rumo ao meu destino.
Mais tarde, em um momento de calmaria, fiz uma breve pesquisa sobre quem pode fazer o cadastro no Bolsa Família, onde fazer e o que precisaria levar. Imprimi a folha e a coloquei na minha mochila. Na semana seguinte eu passaria no mesmo local e, com sorte, conseguiria entregá-lo.
Quis o destino que, no dia seguinte, por um imprevisto nos compromissos, eu passasse novamente no mesmo lugar.
Lá estava a senhora em seu trabalho. Fui num ritmo suficiente para deixar o sinal ficar vermelho. Olhei para ela e fiz um gesto para que se aproximasse. Peguei o papel e abri a janela até a metade. Entreguei-o, informando que ali estavam algumas instruções para realizar o cadastro. Ela repetiu que já tinha ido ao CRAS. Mesmo assim eu prossegui:
— Aqui está a relação de documentos que a senhora precisa levar. Lembre-se das informações dos membros de sua família.
Neste momento ela parou. Em seguida, murmurou:
— Será que é isso?
As buzinas, mais uma vez, se fizeram presentes, nervosas com a passagem do tempo. Falei algo como um preciso ir. Ela se afastou e eu segui adiante, desobstruindo a passagem dos que tem pressa.
Fiquei me perguntando: Será que ela é uma pessoa só? Será que uma pessoa que não tem família, que não tem onde morar, pode receber o Bolsa Família? Essa é uma pesquisa que ainda não fiz. Tenho até o próximo encontro para fazê-la.
Antes de concluir esta crônica, penso nesses dois momentos que, se somados, não devem ter alcançado 3 minutos. Quanto tempo se espera num sinal de trânsito? E quanto fiquei sabendo. E quanto ficou por se saber.
Bom dia!
Notas
*CRAS - Centro de Referência da Assistência Social. Para saber mais sobre os CRAS, acesse a página da Secretaria do Desenvolvimento Social.
Foto de Pixabay: https://www.pexels.com/pt-br/foto/luzes-de-transito-46287/
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