Início de noite, trabalho encerrado, banho tomado, estômago forrado, crianças encaminhadas, é hora de relaxamento. O sofá é tentador, mas na televisão em frente rola o Jornal Nacional. Resolvo procurar um livro impresso e dar um tempo para as telas. Deparo-me com “O fim da pólio - A campanha mundial para a erradicação da doença”, livro de fotografias de Sebastião Salgado, publicado em 2003 pela Companhia das Letras, antes da meta de erradicação da doença, estabelecida para 2005.
No livro as fotografias são intercaladas por textos e depoimentos que explicam a dimensão da campanha e as extremas dificuldades da luta contra um vírus, num mundo cheio de conflitos. Ao final há uma cronologia da doença: seu primeiro indício data do período 1580-1350 a.C. (1)
Fiquei curioso em relação ao que aconteceu desde esse longínquo ano de 2003. O que aconteceu com a meta para 2005? Lá fui eu parar na Internet (adeus descanso das telas).
A dimensão do problema e o esforço conjunto
Há lutas tão grandiosas que tiram o fôlego da gente. Vejamos alguns números.
A campanha conta com a participação de governos e entidades. Seis são os parceiros principais:
- World Health Organization (WHO),
- Rotary International,
- US Centers for Disease Control and Prevention (CDC),
- United Nations Children’s Fund (UNICEF),
- Bill & Melinda Gates Foundation,
- Gavi, the vaccine alliance.
Duzentos países participaram da campanha que contou com 20 milhões de voluntários. Mais de 2,5 bilhões de crianças foram vacinadas. O investimento alcançou a marca dos 17 bilhões de dólares.
O início se deu em 1988. A doença, nessa época, era endêmica em 125 países. Registravam-se 350 mil novos casos a cada ano. Por causa da campanha, em 2001 a pólio era endêmica em 10 países e o número de novos casos anuais caiu para menos de quinhentos.
Para os anos de 2003 e 2004 estabeleceu-se como meta a inexistência de países com pólio endêmica, considerando os esforços contínuos de imunização. Para 2005 foi definida a meta final: Um mundo sem pólio.
Em 1996, Nelson Mandella, então presidente da África do Sul, desafiou os líderes dos países africanos a se mobilizarem para chutar a pólio da África.
O esforço de erradicação da pólio implicava em vacinar todas as crianças, inclusive aquelas vivendo em áreas remotas ou inseguras. Um programa deste porte só funciona com um esforço conjunto, com a colaboração, inclusive de líderes de grupos rebeldes que lutam contra governos em alguns países, mas principalmente com uma legião de agentes de saúde.
Grandes conquistas
Pois bem, em agosto de 2019 a Nigéria, último país com pólio endêmica na África, completou 3 anos consecutivos sem nenhum caso relatado da doença, abrindo caminho para que, em 25 de agosto de 2020, a África fosse certificada oficialmente como livre da pólio selvagem (2).
De olho na linha de chegada
Em 2021 a pólio continua endêmica em dois países: Afeganistão e Paquistão. Até que as transmissões sejam interrompidas, todos os países permanecem sob risco de importação da doença, principalmente os mais vulneráveis.
E há os surtos que voltam a surgir em países que haviam erradicado a doença, ou por conta da importação do vírus selvagem, ou por causa do surgimento e início de circulação de alguma variação. Ações internacionais de controle de surtos continuam sendo necessárias.
Sobre a poliomielite
Há 3 tipos de vírus da pólio. A imunidade contra um dos tipos não confere imunidade para os outros dois. Menos de 1% das infecções resultam em paralisia.
Surtos da pólio eram praticamente desconhecidos antes do século 20. Com a melhora das condições sanitárias do século 20, todavia, a idade média em que os indivíduos eram expostos ao vírus aumentou. Com o progressivo declínio dos anticorpos maternos, a infecção passou a apresentar mais casos de paralisia (3).
O tipo 2 é o único que está erradicado.
Pólio e COVID-19
A campanha de erradicação da pólio deixou um importante legado para o combate de outras doenças. Uma poderosa rede global de laboratórios, combinada com uma força de trabalho treinada e especializada em monitoramento e vigilância de doenças, não só contribuiu para o esforço contra a pólio, mas ajudou nas iniciativas de combate a outras ameaças, como o Ebola e, agora, o COVID-19.
Em entrevista, o presidente do Rotary Internacional, Holger Knaack, comentou que as questões que foram levantadas na década de 1950 a respeito da pólio estão sendo repetidas em relação ao COVID-19. A falta de conhecimento é o que se mostra mais assustador numa pandemia. O conhecimento que há hoje em relação a pólio demonstra a dimensão do valor do conhecimento científico (4).
Por um mundo sem pólio
Se a maratona de erradicação da pólio ainda não chegou ao fim, ainda há preocupações quanto a retomada das atividades de imunização, afetadas pelo surgimento do COVID-19. Os fantásticos resultados alcançados não estão garantidos.
A meta de um mundo sem pólio ainda não foi atingida.
O Paquistão e o Afeganistão estão retomando os esforços pela erradicação, depois da interrupção forçada em 2020. Essa maratona precisa chegar ao fim.
S.T.Azevedo
Referências:
(1) - Livro "O fim da pólio: a campanha mundial para a erradicação da doença", de Sebastião Salgado.
Créditos:
[Imagem de STOP Newsletter p. 1] [Crédito da foto: Yatender Singh/STOP Volunteer]
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