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S.T.Azevedo

Jornadas




Este texto é dedicado a Carla, in memoriam, que nos apresentou caminhos.





No cada vez mais constante convívio de pessoas com máquinas, em nossa busca por melhores condições de vida e de trabalho, vivenciamos crescentes desafios. Algumas soluções são complexas, mas alternativas simples fazem a diferença. Conheci Carla no trabalho com a missão de aprimorar o sistema de informação para que ele fosse mais acessível a quem tivesse deficiência visual. Pude contribuir pouco, despreparado que estava para oferecer, num mundo de imagens, vídeos e textos apresentados em páginas dinâmicas na Internet, acessibilidade para quem não pode ver.


Em troca, recebi muito aprendizado. Aceitar a limitação de ferramentas, sem se resignar, foi um deles. Persistir na busca de novas possibilidades, foi outro. Para concluir essa breve lista, sua firmeza e educação nas relações interpessoais, como observei, numa reunião de trabalho: “por favor, falem um de cada vez “.


Em sua homenagem, segue uma pequena ficção. Uma jornada que ela inspirou e quem sabe, um dia, possa virar realidade.


Carla não dirige. Ela usa o tempo de deslocamento até o trabalho para ouvir músicas que a ajudam a se sintonizar com o mundo. Hoje é dia de sessão de julgamento e ela é a relatora do primeiro processo em pauta.


Seu Antônio é o motorista de táxi que regularmente a leva ao trabalho. Ele sabe quando o dia está para conversas ou quando está para o silêncio. Em sua rotina ele sempre estaciona seu táxi em frente ao seu destino.

Carla desce pelo lado esquerdo do carro, certificando-se de não ter esquecido nada.

 

Seu Edvaldo acordou às quatro da manhã. Ele chega cedo ao Edifício San Rafael, sendo responsável pela vigilância. O dia está chuvoso. Atento ao movimento, ele se dirige a Carla, cumprimentando-a com sua voz amistosa e seu largo sorriso.

- Dra. Carla, bom dia. Deixe-me ajuda-la. Hoje este lado da calçada está escorregadio. Venha por aqui.

 

Seu Edvaldo acompanha Carla, que sobe a escada da entrada e se posiciona em frente à catraca. A voz robotizada do sensor da catraca é ouvida.

 

- Bom dia, Dra. Carla. Sua entrada está liberada. O elevador da direita já foi acionado e a levará ao 9º andar.

 

Carla se dirige ao elevador e aguarda a abertura da porta.

 

Quando a porta se abre, um aviso característico é ouvido. Carla entra no elevador.

 

A viagem se inicia e o elevador avança até o 1º andar. Andressa sai em direção a sua mesa, se despedindo da colega de viagem. Seu dia de trabalho já começou.

 

A viagem prossegue e o elevador faz sua segunda parada: 9º andar. Carla desce do elevador.

 

O corredor do 9º andar é simples e desimpedido. Carla já está a caminho da sala onde está a sua mesa de trabalho. A porta está fechada e ela a abre e entra, colocando a sua bolsa no armário ao lado da mesa e pendurando o seu agasalho no cabide, como de costume. Em seguida ela se senta em sua cadeira e aciona, com seu dedo indicador, um sensor de identificação. Sua estação de trabalho é ativada e o seu acesso é liberado. Carla inicia suas atividades, passando a interagir com sua assessora virtual.

- Vilma, bom dia. Apresente-me a agenda do dia, por favor.

- Bom dia, senhora. O corregedor quer conversar com a senhora antes da reunião das 09h. Ele já está na sala dele.

- Certo. Por favor avise-o que estou disponível agora. Prossiga com a agenda.

- A sessão de julgamento das 09h está confirmada. A senhora é a relatora do primeiro processo em pauta.

- Certo. Prossiga com a agenda.

- O seu filho tem dentista às 15h e o tempo de trajeto da sua casa ao consultório está estimado em 25 minutos.

- Entendi. Envie-me um aviso uma hora antes do horário de saída.

- Aviso programado.

- Prossiga com a agenda.

- No momento não há outros compromissos na agenda para hoje.

- Ok. Avise-me quando faltarem 15 minutos para o início da sessão de julgamento.

- Sim senhora. Aviso agendado.

- Repasse-me o relatório do processo, por favor.

- Pois não. Trata-se de um auto de infração impugnado totalmente pelo contribuinte ...

Ouve-se o relatório no auto falante do equipamento. Carla não interrompe a narração, que prossegue até o final.

- É o relatório.

A narração é encerrada. A sala está silenciosa.

 

- Vilma, houve alguma movimentação nos meus processos?

- De ontem para hoje a senhora recebeu um parecer da assessoria contábil, responde Vilma.

- Certo. Mantenha essa informação na lista de pendências, pois não terei tempo de tratar isso agora.

- Informação mantida na lista, senhora.

- Alguma outra movimentação?

- Não senhora, não há nenhuma outra informação.

- Obrigado.

O diálogo é encerrado. A sala volta a ficar silenciosa.

 

Dona Alzira bate à porta, pede licença e pergunta.

- Bom dia, Dra. Carla. A senhora quer o seu cappuccino agora?

- Bom dia, Alzira. Quero sim. Ainda temos aquele biscoito de canela?

- Temos sim, senhora. Só um instante.

 

- Vilma, por favor retome a execução da "playlist" que eu comecei a escutar ao sair de casa.

 

A sala é preenchida com uma música . O concerto para piano no. 2, de Rachmaninoff, passa a preencher o ambiente.

 

Quem bate à porta agora é Davi. Ele dá bom dia a Carla, comenta algo sobre o trânsito e a dificuldade de deixar os filhos na escola. Depois comenta algo sobre a música que está tocando.

- Carla, muito bonita essa música.

- Eu gosto muito de Rachmaninoff.

- Podemos falar sobre a sessão de julgamento?

- Deixe a Dona Alzira trazer o meu café. Você também gostaria de um cappuccino? Vou pedir para ela preparar mais um.


S. T. Azevedo


Créditos: Foto de Thuong D.

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