Em Rua Sem Saída Eu Não Entro… Será?
- S. Terra de Azevedo

- 15 de nov.
- 3 min de leitura

Jô Soares criou inúmeros personagens memoráveis. Um deles tinha como característica não conseguir argumentar, de pronto, uma afirmação de seu interlocutor. Demorava a encontrar uma resposta e, quando a expressava, fazia isso em outra ocasião e para outras pessoas, causando perplexidade. Procurei por esse personagem, mas não o encontrei. A lembrança que eu tinha não foi suficiente para que os engenhos de busca localizassem o que eu queria.
O tempo vai passando e eu vou tentando aprender que não é necessário ter uma resposta para cada questionamento que se apresenta. Passei a aceitar com certa tranquilidade essa posição de não saber. Em vez de responder, ouvir um pouco mais sobre o que se apresenta — e, assim, buscar possibilidades.
Esta crônica é um exemplo, pois é resultado de reflexões elaboradas depois de uma conversa. Eu conversava com uma colega que, em dado momento, mencionou uma frase que representava o sentimento dela em certa ocasião:
“Em rua sem saída eu não entro.”
No momento em que ouvi a afirmação, concordei com ela. Fazia todo sentido no contexto que ela trouxe.
É uma frase potente. Pareceu-me definitiva. Só que, tal como o personagem do Jô, não deixei de ficar com ela na cabeça. Aos poucos, passei a vê-la em algumas de suas possibilidades.
O que fazer das ruas ou becos sem saída, sem placa de sinalização?
Corte para uma prova do Enem
Metáforas têm suas limitações, mas sigo adiante.
As provas do Enem não são um beco sem saída. Elas fazem parte de um rito de passagem. Mas nem todo mundo consegue seguir o que foi planejado. O objetivo traçado é apenas uma das inúmeras possibilidades.
Candidatas e candidatos de todas as idades participam da prova. E, mesmo para quem consegue se preparar bem, as coisas podem sair errado. A chegada mais difícil que o esperado. O local de prova desconfortável, desconhecido e amedrontador. O ambiente tenso e hostil. Grupos uniformizados. Estar sem uniforme seria um problema? Estar uniformizado seria outro? Um tema de redação inesperado pode abalar a confiança. E a necessidade de cumprir essa etapa da melhor forma possível reforça a tensão.
Os temas de redação trazem uma situação-problema e demandam a escrita de um texto argumentativo usando repertórios os mais diversos. Espera-se uma análise crítica e embasada dos problemas e a proposição de soluções. E não vale tudo, não. Repertórios comuns podem prejudicar, em vez de ajudar. Um exemplo: a música “Que país é esse?” pode ser considerada um lugar-comum. Se quiser se diferenciar, não a use.
Fico pensando se as crônicas que eu escrevo seriam bem avaliadas em um concurso com esse nível de exigência...
Mas o sistema necessita do estabelecimento de critérios para selecionar alguns, pois ele não se propõe a acomodar a todos. É uma competição, no mínimo, estressante. E o que dizer do uso da inteligência artificial para atribuir notas às redações? Se ela é capaz disso, quem seguir a receita de bolo alcançará uma boa nota? O que dizer da criatividade nesse contexto?
O uso desse sistema e suas regras poderiam ser um tema de redação — uma situação-problema? Estaríamos preparados para ouvir essa galera que, aos dezesseis ou dezessete anos, enfrenta um processo como esse? Estaríamos aptos a lidar com seus argumentos ou ficaríamos como o personagem do Jô?
S. Terra de Azevedo
Créditos:
Foto de Mustafa Kalkan, no Pexels.




Transcrevo aqui um comentário enviado por Paulo Pacheco, via WhatsApp.
Crônica oportuna, Sérgio. Compartilho seu ponto de vista. Faço uma digressão para o mundo corporativo, onde observo o crescente desafio das metas, na medida em que demandas complexas aumentam sem as devidas entregas rápidas. A expectativa dos demandantes é alta, e a rapidez está sendo adequada para o hype atual. A automação de processos por meio de robôs vem sendo gestada, com horizonte visível bem ali. Se essa tecnologia realmente vingar, e parece que vai, teremos um desemprego estrutural à frente, bem preocupante. Já do lado das relações sociais, as demandas de duvidas e afetos vêm sendo atendidas por meio de algoritmos, causando aí um certo deserto de emoções nos…
Transcrevo aqui um comentário enviado por Mauro Scharf, via WhatsApp.
O que você compartilha sobre aceitar 'não saber' e sobre 'ouvir um pouco mais' em vez de responder de pronto parece ser um movimento muito significativo e corajoso. Acho que é o teu caminho nessa nova “psicofase … eu particularmente penso que a vida e as conversas não exigem uma resposta imediata e, ao se permitir essa pausa, sempre podemos encontrar novas possibilidades de busca.
É como se a própria experiência de não saber estivesse se tornando um motor para a nossa própria aprendizagem e crescimento.
Na sua crônica Eu consigo perceber como uma afirmação dessas pode trazer um forte senso de segurança, de limite e de proteção contra …
Hoje as IAs são, de certa forma, nossa rua sem saida 😔
Brilhante texto.
Muito boa! 🩷