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Bacia do Pina

  • Foto do escritor: S. Terra de Azevedo
    S. Terra de Azevedo
  • 24 de out.
  • 3 min de leitura

Foto: Bacia do Pina, do arquivo pessoal
Foto: Bacia do Pina, do arquivo pessoal

Caminhando na esteira. Três quilômetros em trinta minutos, quando o painel de instrumentos informa:


Reduza!


Desconcertado, obedeço. O limite de tempo foi atingido. É hora de liberar o equipamento para outro andarilho ou corredor.


Enquanto caminhava, corriam soltos os pensamentos. Fixei os olhos numa palmeira na rua em frente, determinado a não deixá-la se distanciar. No meu ritmo, mantive a distância. E o tempo foi passando. O que seriam doze minutos — alguém se lembra ou já fez o Teste de Cooper? — transformaram-se em vinte e quatro. Por que não trinta e seis?


O tempo, em sua ordem, convive com a gente. Em alguns lugares, flui mais rápido do que em outros. Diferentemente do senso comum, não é contínuo. Mas percebo que o pensamento está indo por caminhos inesperados, e os conceitos de física quântica ficarão para depois. O livro A Ordem do Tempo, de Carlo Rovelli, físico e cosmólogo italiano, está na lista de leituras para “talvez um dia”. Que não será hoje.


Recobro a consciência do exercício físico. Meu caminhar se dá à sombra, no conforto do ar-condicionado. A academia está com pouco movimento neste final de manhã de domingo.


O pensamento, no entanto, foge ao controle novamente. Agora estou percorrendo o caminho para o trabalho — que tenho o privilégio de fazer junto ao mar. Caminho pelo calçadão da Avenida Boa Viagem, depois chego ao Pina. Desconsidero as obras que estão atrapalhando a caminhada e sigo adiante como se elas não existissem.


Passo a ter uma visão da bacia do Pina. Formada pela confluência dos rios Capibaribe, Tejipió, Jiquiá, Jordão, Pina e pelo braço sul do Capibaribe, na maré baixa conta com dois canais laterais que permitem a navegação, além dos bancos de areia que ficam expostos na parte central. Um deles foi batizado com o simpático nome de Coroa dos Passarinhos, onde ocorre intensa atividade pesqueira dos catadores de moluscos.


Prossigo pelo Cais José Estelita, que passa por intensas modificações. As novas pistas passam próximas a arranha-céus e futuras praças. No asfalto novo, marcas da evolução dos trabalhos. Setas pintadas na pista indicam, simultaneamente, “para lá” e “para cá”, testemunhando a inquietação que caracteriza a espécie humana. O projeto vai evoluindo — e eu fico torcendo para que saibamos para onde estamos indo.


Alcanço o Forte das Cinco Pontas — aquele cujas pontas são quatro. O local é arborizado e simpático. Entro pelo centro da cidade num zigue-zague até o local onde estaciono o carro.


Dou-me conta de que não estou indo para o trabalho — e nem estou de carro.


Reforço a concentração da caminhada e prossigo, mentalmente, até o Marco Zero, para ali apreciar sua beleza e tomar uma água de coco antes de retornar.


Antigamente, no caminho existiam alguns armazéns, cujos muros serviam de fundo para a arte urbana. Por um tempo, lá esteve a frase de um autor desconhecido:


Tácia sempre vendeu flores

Mas nunca ganhou uma rosa.


Tento perceber uma brisa acompanhando o trajeto. Penso em cabelos soltos ao vento — para quem os tem e os liberta —, assim como canta Marisa Monte. Os meus, curtos e com pouco movimento, não me oferecem essa experiência.


Quando se está com os sentidos aguçados, é possível observar aspectos que passam despercebidos para quem está atrás de um compromisso. Imagino, nessa caminhada, uma chuva repentina que chega para me fazer companhia — dessas que caem com intensidade, transformando o caminho num desafio de poças d’água capazes de encharcar o tênis de quem corre.


O desconforto do tênis ensopado é amenizado pela paisagem que se sucede: áreas de mangue, árvores plantadas, de cores diversas, prédios velhos ao lado de modernas construções.Uma cidade em suas desigualdades, desperta e em movimento.


Ao final da caminhada — ou da corrida — de volta a Boa Viagem, nada como um banho de mar, seguido de mais uma água de coco. Dou-me conta de que o conforto da academia tem suas inconveniências.


O dia segue seu percurso. A transpiração arrefece a temperatura do corpo. De volta para casa, um banho frio o coloca de prontidão — pleno para, em harmonia com a mente, lidar com as coisas da vida.


Termino esta crônica com um poema de Miró da Muribeca, extraído do livro Miró até agora.


o céu na tua frente

o chão sob os teus pés

o sol iluminando tuas sandálias

e tu não enxergas outros

caminhos


S.T.Azevedo


Nota:

O texto sobre a bacia do Pina foi elaborado a partir do seguinte artigo, publicado pela Rev. Bras. Enga. Pesca 4(1), jan. 2009. DINÂMICA DA BIOMASSA FITOPLANCTÔNICA E VARIÁVEIS AMBIENTAIS EM UM ESTUÁRIO TROPICAL (BACIA DO PINA, RECIFE, PE).


 
 
 

12 comentários

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Luiz Claudio Castro
Luiz Claudio Castro
29 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Uma viagem na sua narrativa. Daqui do Planalto Central acompanhei todo o filme da sua caminhada, com as idas e vindas para a academia.

Parei e fiquei pensando sobre a Tácia, que sempre vendeu flores e nunca ganhou uma rosa… Será que ela não era a própria rosa que perfumava todos que passavam por ela?!

Parabéns pelo dom de escrever com a alma!

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S. Terra de Azevedo
S. Terra de Azevedo
04 de nov.
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Luiz, penso nas caminhadas como uma metáfora do ciclo de vida. Por um lado representam um processo universal, por outro oferecem algo particular de cada indivíduo.

Tácia é, para mim, talvez, a síntese de uma vivência invisível num mundo tão impessoal. Mas ela caminha, e talvez perfume alguns caminhos.

Abraços!

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Sandra Aline de Oliveira Barbosa
Sandra Aline de Oliveira Barbosa
24 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Sensacional!

Abismada com o profundo conhecimento das nossas águas na narrativa de um paulistano.

Uma crônica que nos faz caminhar junto com o cronista.

Parabéns!

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S. Terra de Azevedo
S. Terra de Azevedo
27 de out.
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Sandra, como paulistano de nascença, e recifense de coração, tinha uma noção limitada da Bacia do Pina. Acostumado a ouvir falar do Capibaribe e do Beberibe como formadores do Oceano Atlântico, foi com surpresa que encontrei a profusão de rios que chegam até nós. Uma breve pesquisa me ajudou a ampliar um pouco essa visão. Um texto que usei como referência foi publicado na Rev. Bras. Enga. Pesca 4(1), jan. 2009, que eu menciono ao final da crônica.

Obrigado pela gentileza do comentário.

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ADRIANO COSTA
ADRIANO COSTA
24 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Sensacional! Lendo e refletindo..

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S. Terra de Azevedo
S. Terra de Azevedo
27 de out.
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Obrigado, Adriano. Procurei construir um texto leve, mas capaz de oferecer alguns momentos de reflexão.

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Clayton Queiroz Jr
Clayton Queiroz Jr
24 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Excelente reflexão sobre o nosso dia a dia. Gostei muito!!

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S. Terra de Azevedo
S. Terra de Azevedo
27 de out.
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Clayton,

Obrigado por seu comentário. Nosso dia a dia pode se tornar um pouco mais vívido quando nos propomos, por alguns momentos, a observar o que nos cerca.

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reinaldoprevitalli
24 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Você me transportou para o Recife, obrg

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S. Terra de Azevedo
S. Terra de Azevedo
27 de out.
Respondendo a

Reinaldo, bom saber que você acompanhou essa caminhada, reavivando lembranças do nosso Recife. Abraços!

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